O jornalista e o carteiro

Por que não se fala o número de pessoas curadas de covid? Ou só focam nos contaminados, nos que morreram? Por que jornalista só fala de tragédia, só fala os números ruins? Com certeza, é pra desestabilizar o governo.

Você já ouviu esses argumentos por aí, né? Eu vou tentar explicar porque eles não fazem sentido.

Imagina que caiu um avião.

Você consegue pensar no Jornal Nacional começando assim?

“Avião cai e mata 190 pessoas. Mas hoje também decolaram e pousaram mais de 40 mil aviões em todo o mundo. Nós vamos ao vivo com o repórter Fulano de Tal, que está lá no aeroporto de Congonhas, com um passageiro que acabou de pousar em São Paulo, sem nenhum arranhão. Fulano é com você.”

Ora, caiu um avião.

Você quer saber o que aconteceu. Onde foi, quando, por quê? Teve falha mecânica, do piloto? Não é mais seguro voar? Como isso me impacta? Muda alguma coisa pra mim?

A pandemia está colocando todo mundo no seu limite mental, eu sei. Ter que ficar trancado em casa ou com mobilidade reduzida, sem poder viajar, relaxar, encontrar com as pessoas que a gente ama, é muito difícil.

E aí a gente liga o noticiário e jornalista só fala em tragédia, mais gente morrendo, colapso nos hospitais, falta de medicamento, de oxigênio, políticos discutindo atrocidades, uma situação exaustiva pra todo mundo. A gente está cansado.

Mas contar esses números não só dá a dimensão da tragédia que a gente está vivendo como é o ponto de partida pra melhorar, evitar, discutir, criar políticas públicas pra se defender dessa tragédia e de tragédias futuras.

Não que o nosso governo atual goste muito de prevenir mortes, né? Porque vários países enfrentaram essa situação antes e deram caminhos que a gente optou por não seguir…

Mas é uma teoria da conspiração sem nenhum sentido achar que noticiar a tragédia tem alguma outra finalidade senão informar a população. Pra que ela possa se proteger, descobrir como se contagia, o que é preciso evitar, o que não se pode fazer.

No 11 de Setembro de 2001, quando as Torres Gêmeas caíram, ninguém falou: “não, não é uma tragédia, não. Morreram lá 3 mil, mas quantas milhões de pessoas, que vivem em Nova York, sobreviveram?”

Porque isso não faz nenhum sentido.

Era preciso entender o que estava acontecendo e porquê. Pra poder saber quem estava por trás, o que queria, como combater, impedir que acontecesse de novo.

Culpar o jornalista pelo trabalho que estamos fazendo de informar é como brigar com o carteiro porque ele te traz os boletos. Ninguém quer receber boleto! Mas a culpa não é do carteiro!

Eu sei que pras famílias que estão com parentes internados, ou que estão chorando a perda de alguém, ficar vendo essas informações é especialmente doloroso. Inclusive acho que está tudo bem se essas pessoas optam por não ver o noticiário. Acho até que a gente poderia ter mais exemplos de quem conseguiu vencer a luta contra o vírus, pra servir de esperança pra essas famílias.

Mas brigar com os números de uma tragédia impede que a gente possa enfrentá-la. E uma tragédia não é medida pela quantidade de pessoas que sobrevivem a ela… como dizer que muitos passageiros voaram sem sofrer nada, num dia em que um avião caiu.

Pra saber se a empresa foi omissa, se o piloto foi imprudente, se faltou infraestrutura ou seja lá qual foi a causa do acidente, a gente precisa lidar com o fato de que houve um acidente.

O mesmo acontece na pandemia.

Informar é como entregar os boletos. O jornalista também não gosta de dar só más notícias.

Mas só tem um jeito de resolver os boletos: trabalhando pra pagar. E só tem um jeito de resolver as más notícias: trabalhando pra que elas acabem e não aconteçam de novo. E isso a gente faz cobrando quem a gente elegeu como representante.

O jornalismo é um dos temas que discuto no meu podcast, o Nós da Imprensa. Você também pode participar dessas discussões por lá.

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