Coronavírus: “Cancelem tudo”

Artigo do prof. Yascha Mounk, da Universidade Johns Hopkins (EUA), publicado originalmente na The Atlantic, logo no início da pandemia do coronavírus. Traduzi porque me parece muito esclarecedor — e mostra como autoridades estão demorando para agir.

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CANCELEM TUDO

O distanciamento social é a única maneira de parar o coronavírus. Nós devemos começar imediatamente.

imagem mostra um aeroporto vazio
SPENCER PLATT / GETTY

Ainda não sabemos todas as ramificações do novo coronavírus. Mas três fatos cruciais ficaram claros nos primeiros meses deste extraordinário evento global. E o que eles trazem não é um pedido para manter a calma, como muitos políticos ao redor do mundo sugerem incessantemente; é, pelo contrário, o caso de mudar nosso comportamento de maneira radical — e agora.

O primeiro fato é que, pelo menos nos estágios iniciais, os casos documentados de COVID-19 parecem aumentar exponencialmente. Em 23 de janeiro, a província chinesa de Hubei, onde fica a cidade de Wuhan, tinha 444 casos confirmados. Uma semana depois, em 30 de janeiro, havia 4.903 casos. Outra semana depois, em 6 de fevereiro, eram 22.112.

A mesma história está agora acontecendo em outros países ao redor do mundo. A Itália teve 62 casos identificados de COVID-19 em 22 de fevereiro. Tinha 888 casos em 29 de fevereiro e 4.636 em 6 de março.

Como os Estados Unidos têm sido extremamente lentos em testar pacientes para o coronavírus, a contagem oficial de 604 pessoas provavelmente representa uma fração do número real de casos. Mas mesmo se considerarmos esse número, isso sugere que devemos nos preparar para ter até 10 vezes mais casos por semana a partir de hoje e até 100 vezes mais casos daqui a duas semanas.

O segundo fato é que esta doença é mais letal que a gripe, à qual os honestamente mal informados e os irresponsáveis ​​insistem em compará-la. As estimativas antecipadas, feitas antes que os dados estivessem amplamente disponíveis, sugeriram que a taxa de mortalidade do coronavírus poderia ser de cerca de 1%. Se esse palpite for verdadeiro, o coronavírus é 10 vezes mais mortal que a gripe.

Mas há motivos para temer que a taxa de mortalidade possa ser muito maior. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a taxa atual de casos fatais é de 3,4%. Esse número pode ser um exagero, porque os casos leves da doença têm menos probabilidade de serem diagnosticados. Ou pode ser brando demais, porque muitos pacientes já foram diagnosticados com o vírus, mas ainda não se recuperaram (e ainda podem morrer).

Quando o coronavírus se espalhou pela Coréia do Sul, muitos observadores apontaram as taxas de mortalidade comparativamente baixas no país para justificar um otimismo indevido. Em países com sistemas médicos altamente desenvolvidos, alegaram, uma parcela menor de pacientes morreria. Mas, embora mais da metade de todos os pacientes diagnosticados na China já tenham sido curados, a maioria dos pacientes sul-coreanos ainda está no meio da doença. Dos 7.478 casos confirmados, apenas 118 se recuperaram; a baixa taxa de mortalidade ainda pode aumentar.

Enquanto isso, as notícias da Itália, outro país com um sistema médico altamente desenvolvido, até agora têm sido chocantes e ruins. Na região rica da Lombardia, por exemplo, houve 7.375 casos confirmados do vírus a partir de domingo. Desses pacientes, 622 haviam se recuperado, 366 haviam morrido e a maioria ainda estava doente. Mesmo sob a suposição altamente implausível de que todos os doentes ainda se recuperam completamente, isso sugere uma taxa de mortalidade de 5% — significativamente maior, não menor, do que na China.

O terceiro fato é que, até agora, apenas uma medida foi eficaz contra o coronavírus: distanciamento social extremo.

Antes que a China cancelasse todas as reuniões públicas, pedisse à maioria dos cidadãos que se colocassem em auto-quarentena e selasse a região mais afetada, o vírus estava se espalhando de maneira exponencial. Uma vez que o governo impôs o distanciamento social, o número de novos casos diminuiu; agora, pelo menos de acordo com as estatísticas oficiais, todos os dias temos mais notícias de pacientes curados do que de pacientes recém-infectados.

Alguns outros países adotaram medidas enérgicas para aumentar o distanciamento social antes que a epidemia atingisse proporções devastadoras. Em Cingapura, por exemplo, o governo rapidamente cancelou eventos públicos e instalou estações médicas para medir a temperatura corporal dos transeuntes, enquanto empresas privadas distribuíam desinfetante para as mãos. Como resultado, o número de casos cresceu muito mais lentamente do que nos países vizinhos.

Esses três fatos implicam uma conclusão simples. O coronavírus pode se espalhar com uma rapidez assustadora, sobrecarregando nosso sistema de saúde e tirando vidas, até que adotemos formas sérias de distanciamento social.

Isso sugere que qualquer pessoa em posição de poder ou autoridade, em vez de subestimar os perigos do coronavírus, deve pedir que as pessoas fiquem longe de locais públicos, cancelem grandes reuniões e restrinjam a maioria das formas de viagens não essenciais.

Dado que a maioria das formas de distanciamento social será inútil se as pessoas doentes não puderem ser tratadas — ou se dar ao luxo de ficar longe do trabalho quando estiverem doentes — o governo federal também deve tomar algumas medidas adicionais para melhorar a saúde pública. Deveria assumir os custos do tratamento médico para o coronavírus, conceder licença médica paga a trabalhadores afetados, prometer não deportar imigrantes sem documentos que procuram ajuda médica e investir em uma rápida expansão das instalações da UTI.

Os últimos dias sugerem que é improvável que esse governo [Trump] faça essas coisas bem ou rapidamente (embora o governo tenha sinalizado na segunda-feira que buscará alívio para trabalhadores por hora, entre outras medidas). Portanto, a responsabilidade pelo distanciamento social agora recai sobre os tomadores de decisão em todos os níveis da sociedade.

Você tem um time de esporte? Jogue seus jogos na frente em um estádio vazio.

Você está organizando uma conferência? Adie até o outono.

Você tem um negócio? Diga a seus funcionários para trabalharem em casa.

Você é o diretor de uma escola ou o presidente de uma universidade? Lecione aulas online antes que seus alunos adoeçam e infectem seus familiares mais frágeis.

Você está fazendo uma campanha presidencial? Cancele todos os comícios agora.

Todas essas decisões têm custos reais. Fechar escolas públicas na cidade de Nova York, por exemplo, privaria dezenas de milhares de crianças de refeições que eles necessitam todos os dias. Mas o trabalho das instituições e autoridades é mitigar esses custos, de maneira mais humana possível, e não usá-los como uma desculpa para colocar o público em risco de uma doença mortal transmissível.

Finalmente, a responsabilidade mais importante recai sobre cada um de nós. É difícil mudar nosso próprio comportamento, enquanto a administração e os líderes de outras instituições importantes enviam a sugestão de que devemos continuar nossa vida social normalmente. Mas devemos mudar nosso comportamento de qualquer maneira. Se você se sentir um pouco doente, pelo amor do seu vizinho e do avô de todos, não vá trabalhar.

Quando a epidemia de influenza de 1918 infectou um quarto da população dos EUA, matando centenas de milhares em todo o país e milhões em todo o mundo, escolhas aparentemente pequenas fizeram a diferença entre vida e morte.

Enquanto a doença se espalhava, Wilmer Krusen, comissário de saúde da Filadélfia, permitiu que um grande desfile acontecesse em 28 de setembro; cerca de 200.000 pessoas marcharam. Nos dias e semanas seguintes, os corpos se amontoaram nos necrotérios da cidade. No final da temporada, 12.000 moradores haviam morrido.

Em St. Louis, um comissário de saúde pública chamado Max Starkloff decidiu fechar a cidade. Ignorando as objeções de empresários influentes, ele fechou as escolas, bares, cinemas e eventos esportivos da cidade. Graças a suas ações ousadas e impopulares, a taxa de mortalidade per capita em St. Louis foi metade da da Filadélfia. (No total, aproximadamente 1.700 pessoas morreram de gripe em St. Louis.)

Nos próximos dias, milhares de pessoas em todo o país enfrentarão a escolha entre se tornar um Wilmer Krusen ou um Max Starkloff.

No momento, parecerá mais fácil seguir o exemplo de Krusen. Por alguns dias, enquanto nenhum de seus colegas estiver dando os mesmos passos, mover aulas on-line ou cancelar eventos de campanha parecerá totalmente estranho. As pessoas vão ficar com raiva. Você será ridicularizado como extremista ou alarmista. Mas ainda é a coisa certa a fazer.

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YASCHA MOUNK is a contributing writer at The Atlantic, an associate professor at Johns Hopkins University, a senior fellow at the German Marshall Fund, and a senior adviser at Protect Democracy. He is the author of The People vs. Democracy.

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